«Uma escola muito à frente» - nº 17
– Eu não
percebi patavina do que disseste, Mariana
–
confessou a irmã mais velha, enquanto servia os outros de arroz de ervilhas com
panados acabadinhos de fritar. – Rebobina, vamos, do início!
O Manuel
revirou os olhos, fazendo uma cara que a Maria interpretou logo como «não era
melhor deixá‑la acalmar
primeiro?». Mas o mal estava feito, e a Mariana recomeçava já a sua narração,
bastante indignada, do que se passava na escola. O caso não era para menos,
pois muito mudara desde que o novo diretor passara o portão da escola Martim Moniz.
Fora imediata, a reviravolta! Agora, estavam mesmo
todos
muito entalados, ou pior!, enlatados, comentava a gémea do Manuel, fora de si.
– Eu vou
buscar o horário, para compreenderem
melhor.
– Mariana,
sentada! – ordenou o pai, tentando conter o riso. Quantas vezes mostrara ela
aquela folha de papel nas duas semanas anteriores? Inúmeras, já todos a sabiam de
cor. Todos… menos os mais velhos.
– Está
bem, pai, mas percebia‑se tudo muito melhor.
– Vá,
explica, não percas tempo – incitou a Margarida, divertidíssima com a cena.
Também
para ela tudo parecia diferente e, tratando as coisas pelos seus nomes, muito
assustador. Mas era mesmo engraçado ver a irmã naquele estado de exaltação.
– Se eu
tivesse ido buscar a porcaria do papel…
– Então,
filha… – censurou a Teté, tentando conter o vocabulário que começava a resvalar
para as tontices.
– Nesse
papel, está tudo preto no branco. Eu já tive aulas de «cozinha para 500
comilões», de «secretaria de alunos», de…
– «Lavagem
de casas de banho» – recordou a Mónica, torcendo o rosto num esgar de nojo.
– Isso! A
Mónica já começou a lavar casas de banho!!! Mas somos criados dos outros, é?!
– Continuo
sem perceber, Mariana – comentou a Maria.
– Dah!!!
Então?!
O Manuel
tossicou, pedindo uns minutos de atenção.
– Prometo
ser breve – informou, antes de começarem as reclamações do costume, mandando‑o
calar por
esclarecer tudo demasiado pormenorizado. – O novo diretor tem imensas ideias
inovadoras para a nossa escola. Uma delas é, para começar, estarmos durante
quatro semanas a rodar de funções. Temos de dar aulas, não é só receber, mas dessa
parte eu gosto…
– Claro,
cromo! – resmungou a Mariana.
– Aulas
que podem ser dadas aos professores, aos funcionários ou aos nossos colegas. Eu
já dei uma interessantíssima aula…
–
Presunção e água benta – sussurrou a Mónica, divertida.
– … sobre
dinossauros!
– Por que
será que isso não me espanta? – gozou o Miguel.
– Mas, em
compensação – continuou o Manuel, imune às piadas –, já recebi uma aula de
croché que foi um filme de terror. Quase fiquei com as mãos no meio daquilo, foi
uma sorte ter saído de lá com vida! Mas parece que é a área de eleição da dona
Fátima, a auxiliar que toma conta das compras e vendas na papelaria.
– Agora despercebi! – gritou a Margarida. – Mas isso não é uma função escolar!
– Pois
não, mas como temos todos de dar aulas, ninguém escapa, cada um pode escolher a
área em que quer ensinar. No caso da dona Fátima, foi croché…
– Ah, está
bem – concordou a Margarida. – A mim só pediram ainda coisas giríssimas como
fazer arroz de grelos para um regimento! Grelos!!! Aquilo dá um trabalhão a arranjar!
E aproveitar os talos da alface para pôr na sopa? Estamos a poupar imenso na
cantina…
– Sou só
eu que estou confusa? – suplicou a Maria.
– Posso? –
A Mónica tomava as rédeas da conversa.
– A ideia
do diretor é genial, a meu ver. Quer que todos, funcionários, professores e
alunos passem por todas as atividades da escola, para que as possam valorizar.
E não só, para que também as saibam respeitar. Por exemplo, à minha turma já
coube a terrível cena de lavar casas de banho. Juro‑vos,
nunca mais
saí de lá sem verificar se deixava tudo limpo e pronto para a próxima pessoa! A
ideia funciona mesmo!
– E a mim
coube‑me ontem a
tarefa de pintar uma parede que estava vandalizada – esclareceu a Margarida, mostrando
as mãos ainda carregadinhas de bocados de tinta por limpar. – Se apanho alguém
a sujar aquela parede, nem sei o que lhe faço! Ficou um espanto!
– O
conceito é fantástico – concordou o Miguel. – Como foi ele ter essa ideia?
Alguém sabe?
Vários
«nãos» surgiram espalhados pela mesa. Nenhum dos irmãos conseguira descobrir
essa parte, de facto. A Mónica, agora no 11.º ano, já fizera a mesma pergunta várias
vezes, sem obter respostas. O que ela sabia era que a escola se estava a
transformar. Não havia refilices na cantina, as casas de banho estavam muito
mais asseadas, os canteiros tratados e estimados, ninguém se insurgia com a
demora
nas
fotocópias, enfim, tudo se modificava aos poucos.
– Só me
preocupa uma coisa – disse o Manuel. – É que eu e a Mariana estamos no 9.º,
temos de acautelar as notas, porque para o ano já tudo conta! Espero que estas semanas
não estraguem os nossos planos.
Houve logo
quem se risse, claro. Como podia o Manuel preocupar‑se com isso? Só tinha notas excelentes,
sempre…
– Tenho de
ir conhecer esse homem – comentou o Mateus, com uma expressão sincera. – A
ideia pode e muda mesmo a vivência de toda uma comunidade. Muito interessante!
– Desde
que não tragam essas modernices cá para casa… – avisou a Alice, rindo‑se e começando a recolher os pratos.
– Qualquer dia, estou no desemprego! Ah! E amanhã vou arranjar grelos, alguém
quer ajudar?
Risota
geral, mais uma vez. A Margarida, com os seus onze anos muito espigados,
acalmou‑a:
– Tu és
insubstituível, Alice, insubstituível…
Recebeu um
abraço com direito a beijo nos cabelos, e a reação dos outros irmãos não se fez
esperar:
– Alice,
tu estragas essa miúda com mimos!!! – ralhou o Miguel.
– Insubstitutível! – disse a Madalena, tentando receber beijos e abraços.
– Não é
assim que se diz, é…
– Manel! –
ouviu‑se um coro
de vozes a reclamar.
Nada a
fazer. Ninguém entendia a necessidade do Manuel pôr tudo no seu sítio,
esclarecer tudo, informar de tudo!
– Quando é
que eu vou para essa escola?
– Olha,
Madalena – disse a mãe –, quando chegares ao quinto ano. Ainda só estás no
primeiro, não é?
– Mas já
sei escrever o meu nome! Querem que eu escreva?
– Não,
Madalena, outra vez, não!!!
Foi a
resposta, também em coro, que antecedeu o bolo de cenoura.
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